E chega o dia, a noite, a hora em que nos separamos. Não é algo premeditado, embora já tenha começado há muito tempo. Foi aos poucos que fomos levados a um lugar de onde já não podemos sair ilesos. Não há uma causa. É difícil dizer porquê. Claro que se pode sempre compor uma história, em particular uma que nos defenda de qualquer crime, que justifique um e outro irrisório pecado. Esperamos que um bom amigo nos ouça com atenção, aceite a nossa mentira e diga: é triste, mas teve de ser, não havia mais caminho. Em particular desejamos que se compreenda o que não se deixa transferir por palavras, já que o que nos vai pela alma é um remoinho que não vem escrito em nenhuma língua que possa ser trazida para a nossa. Tudo tem de ser interpretado e com isso qualquer facto é sempre ligeiramente alterado. Ninguém se encontra em posição de julgar quem quer que seja, sobretudo o outro que connosco aguentou todas as horas.
Doi sempre separar o que estava junto. É sempre mais um falhanço. Alguma coisa é rasgada, quebra-se, fica por completar. Há uma dor que avança e recua como a maré sobre a infinita areia. Atinge um ponto em que se julga que já não se vai aguentar e depois chega um leve alento através do olhar de uma criança que ignora tudo isto, o viver e morrer no mesmo compasso, e permite futuro. Esperamos um telefonema e tememos o mesmo telefonema. Tomamos um duche de água gelada. Ficamos mais tempo do que o necessário a dissolver o café instantâneo num copo com água morna. Queremos convencer-nos de que foi a vida, e não nós, que nos separou cruelmente. Queremos tudo menos culpas, porque estamos cheias delas. Se possível conveniente fugir da casa que, noutra vida, nos pareceu nossa e enfrentar, num quarto de hotel selado, uma solidão que regressa de muito longe e não esperava senão por isto para ocupar todo o espaço em volta. Em geral são dois ou três dias assim, a cabeça pesada, inclinada sobre as impecáveis almofadas, a fitar uma janela de onde se vêem outras janelas, outras vidas por compreender. Depois há um amigo que telefona. Está de passagem. Pergunta se não se quer ir a um jantar num jardim de uma casa na parte velha da cidade. É um esforço, mas logo se consegue apanhar um táxi onde se fala excessivamente com o motorista dizendo mal de tudo. Chega-se mais cedo do que qualquer um. Dão-nos uma taça de champanhe que nos fica nas mãos. Cada pessoa que chega é um alarme. O tempo não esquece ninguém para marcar com as suas garras as faces e os corpos…
Saímos para um táxi que nos espera. Sentamo-nos no banco da frente e contamos de novo a nossa desgraça em resumido. Exageramos na gorjeta. Estamos a pagar para a expiação dos pecados. A cama não é nossa, o candeeiro á cabeceira projecta uma luz fraca. Somos intrusos num quotidiano que nos é estranho, um espaço espesso onde respirar se torna um trabalho.
Nada há que se faça senão esperar que o amor regresse ao nosso corpo e nos rapte para uma outra partida.
Pedro Paixão
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